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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

I - Outra história sobre abismos

Queda.
Da cama quente para o chão frio.
De um mundo confortável e sem aventuras para um mundo real e imprevisível.
Fazia anos que Artur não acordava assim. Normalmente as crianças caem da cama por não conhecer ainda o espaço dela, depois de um tempo o corpo acostuma com o limite e não ultrapassa mais. Mas o outono chega sempre assim: quedas.
As folhas sem vida caem e os dias escorrem pelo calendário, sem pressa para chegarem ao fim. Devido ao tombo, queda era a palavra que ecoava na cabeça de Artur naquela manhã cinza de terça-feira. Seus sonhos sempre foram baixos. Seu pai sempre dizia que quando mais alta a subida, mais violenta a queda. Habitou-se com a planície e estava bem ali. Não era mais um garoto com uma banda de rock, cheio de amigos, popular entre as meninas e sonhando com o sucesso. Era um homem de 30 e poucos anos, trabalhando em um cubículo, mal conhecia seus colegas de trabalho e seus vizinhos. Mas estava bem. Não sentia falta de nada.
Isso até agora.
Sentia uma ausência enorme naquele instante. Ali, jogado no chão, lembrou dos pais, dos amigos que perderam-se pelo mundo e de tudo que poderia ter sido e não foi. Lembrou-se também do sonho que tumultuara sua noite e levou-o ao chão.
Estava perdido numa cidade fantasma, do tipo que sempre aparecem em filmes de faroeste. Páginas e páginas de livros sobre o chão de areia, a poeira não permitia ver quase nada. Ia andando sem rumo, até que chegou numa ponte. Sobre ela, uma garota de costas, olhando fixamente para baixo. Ele tocou levemente o ombro dela e sem virar-se ela interrogou-o:
- Sabia que tinha um rio aqui em baixo?
Sem dar espaço para qualquer reação, ela completou:
- Agora é só abismo.
Artur inclinou-se para olhar também. Só havia terra seca em baixo da ponte. Sem qualquer vestígio de vida.
- Por que você não pula?
- O quê?
- Pule. O que você tem a perder?
Os olhos verdes dela apontados para ele, à espera de uma resposta. Nada. Ele não tinha nada. Nem amigos, nem família. Sem raízes ou alicerces. Por que não pular?
A segurança do chão era boa para ele. A estabilidade fazia-o acreditar que nada poderia abalá-lo. Mas por que a dúvida então?
Estava sentado numa sarjeta, num beco imundo. A menina estava lá, os cabelos castanhos jogados sobre o rosto, colocando cada vez mais interrogações na mente dele.
- E os seus sonhos, o que você fez com eles?
- Eles se cansaram. Ou eu me cansei deles. -
Estão em algum lugar. Respirando com dificuldade, entubados. Você teve coragem de largá-los lá, mas não quis puxar os aparelhos da tomada, não foi? Eles podem estar em coma, porém continuam escutando sua desilusão gritando pelos corredores brancos e repletos de luz fria. Sussurram as vezes, eu já escutei. Chamam seu nome bem baixinho, murmuram coisas lindas que nunca existiram. Contaram-me das flores arrancadas antes que pudessem doar ao mundo seu perfume, dos espinhos que feriram suas mãos e que fizeram que você desistisse. Mas ainda há tempo. Pouco, mas sempre há.
- Um dia eles se cansam e morrem sozinhos.
- Só no dia em que mais ninguém acreditar neles.
- Eu não acredito, já basta.
- Mas eu vou continuar aqui acreditando.
Sentiu um vazio. Um vazio que nunca tinha notado. Ele era um caixa oca, sem fé nenhuma. Nunca tinha sentido falta disso e aquela voz doce trouxe a tona tudo que ele nem sabia que existia.
-Eu vou ficar aqui, com você, com todos esses sonhos esquecidos...
Ela apertou a mão dele com força e ele não sabia mais se estava realmente sonhando. Acordou com a lembrança daqueles olhos, da pergunta e do abismo de flores mortas. Levantou envergonhado pela queda, trocou de roupa, saiu sem tomar café da manhã e foi ao trabalho. Atrasado novamente, atravessou a cidade ignorando o feriado que as ruas desertas anunciavam. Parou na porta trancada do prédio e ia puxar a maçaneta se esse movimento não tivesse sido freado por uma voz agora familiar:
- Hoje não é dia para coisas comuns, Artur.

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